Quando se fala em mobilidade urbana inovadora, muitos imediatamente pensam no Smart, com suas dimensões compactas e design arrojado. Porém, o que poucos sabem é que muito antes dele, o Brasil já tinha um projeto audacioso, criado pelo visionário João Augusto Conrado do Amaral Gurgel. O Gurgel MotoMachine, apresentado ao público no Salão do Automóvel de 1990, surgiu como uma solução pioneira para os desafios do transporte urbano, especialmente nas grandes cidades.
O Contexto do MotoMachine
Em um período onde o trânsito já começava a ser um problema crescente nas metrópoles, o Gurgel MotoMachine se destacava por suas dimensões reduzidas e sua simplicidade. O projeto não tinha a sofisticação dos veículos urbanos que conhecemos hoje, mas foi uma resposta direta à necessidade de soluções mais eficientes e econômicas. O MotoMachine refletia o estilo característico de Gurgel: funcionalidade acima de tudo.
Se você já ficou surpreso ao ver um carro como o Smart, imagine como seria se deparar com o MotoMachine em pleno 1990. Esse pequeno notável foi pensado para ser uma opção econômica em todos os sentidos: tanto em dimensões quanto no consumo de combustível. Mas, apesar dessa simplicidade, o MotoMachine não era um carro sem personalidade. Pelo contrário, ele trazia um conjunto de características que o tornavam único.
Design Compacto e Funcional
A aparência do Gurgel MotoMachine pode, à primeira vista, parecer um pouco excêntrica para os padrões atuais. No entanto, sua proposta era totalmente voltada para o funcionalismo. Com um teto rígido removível, outro de lona, um estepe exposto na traseira e laterais de acrílico em vez de vidro, o carro atraía olhares por onde passava. Era uma mistura de estilo descolado com simplicidade técnica.
O que tornava o MotoMachine especial era sua versatilidade. Além do design compacto, o carro oferecia uma experiência divertida para seus dois ocupantes. O modelo possuía um banco traseiro ao estilo 2+2, que, na verdade, funcionava como porta-malas. Para aqueles que queriam um pouco mais de aventura, havia ainda a opção de uma capota de lona, conhecida como “tampa careca”, que cobria apenas a cabeça do motorista e do passageiro, dando ao carro um ar ainda mais peculiar.
A Mecânica por Trás do MotoMachine
Embora tenha sido projetado para o transporte urbano, o MotoMachine tinha uma mecânica bem básica. Seu motor era um dois cilindros de 0,8 litro, capaz de gerar apenas 34 cavalos de potência e 6,6 kgfm de torque. Pode parecer pouco, e realmente era, especialmente para os padrões atuais, mas esse desempenho era suficiente para a proposta do veículo: um carro compacto, econômico e voltado para o trânsito das cidades.
O motor utilizado no MotoMachine era o mesmo do Gurgel BR-800, o primeiro carro com tecnologia 100% brasileira. Gurgel, em sua visão de futuro, sempre acreditou que o campo deveria ser utilizado exclusivamente para a produção de alimentos, o que o levou a não investir em motores que utilizassem etanol, uma escolha comum na época no Brasil.
Uma Experiência de Direção Única
Dirigir um Gurgel MotoMachine era uma experiência única, tanto pelo seu tamanho quanto pela sua simplicidade. O modelo de 1991, fotografado para a revista Quatro Rodas, pertencia a Felipe Bonventi, um entusiasta de carros que também possuía outros modelos da Gurgel, como o XEF e o X-15. Segundo Bonventi, o carro tinha apenas 40.000 km rodados quando o adquiriu de uma senhora, sua única dona até então.
Dirigir o MotoMachine exigia uma certa habilidade, especialmente devido à sua baixa potência. O pequeno motor de dois cilindros tinha dificuldade em entregar torque em baixas rotações, o que era esperado, considerando suas características semelhantes às de um motor de motocicleta. Bonventi ainda ressalta que o escapamento do MotoMachine possuía menos silenciadores do que os outros modelos Gurgel, o que conferia ao carro um ronco mais marcante.
Além disso, a suspensão, embora leve, era rígida, o que muitas vezes resultava em uma condução um tanto desconfortável. No entanto, essa rigidez também contribuía para manter a estabilidade em curvas, algo essencial para um carro de suas dimensões.
Interior Simples e Funcional
O interior do Gurgel MotoMachine seguia a mesma linha de simplicidade que caracterizava o exterior. Os comandos eram de origem Volkswagen, o que proporcionava uma sensação de familiaridade para os motoristas. O banco de couro vermelho dava um toque de estilo, combinando com os frisos externos do veículo.
Por outro lado, o excesso de plástico no interior gerava alguns ruídos indesejáveis. Esse material, escolhido para compensar a leveza do carro, muitas vezes comprometia o conforto dos ocupantes. Ainda assim, o MotoMachine era um carro que entregava exatamente o que prometia: simplicidade, economia e originalidade.
Uma Produção Limitada e Exclusiva
A produção do MotoMachine foi extremamente limitada. Não há um número oficial, mas acredita-se que apenas cerca de 177 unidades tenham sido fabricadas. Isso torna o carro uma verdadeira raridade nos dias de hoje, sendo altamente cobiçado por colecionadores e entusiastas de veículos clássicos. Entre bugues, jipes, veículos elétricos e o primeiro automóvel totalmente nacional, a Gurgel deixou um legado de inovação e criatividade na indústria automobilística brasileira.
O Projeto Delta: O Sonho Não Realizado
Infelizmente, o sonho de João Gurgel não foi adiante como ele esperava. Antes de sua fábrica fechar as portas em 1994, Gurgel estava envolvido em um novo projeto, chamado Delta, em parceria com o governo do Ceará. O projeto Delta era uma evolução do conceito do MotoMachine, com algumas melhorias técnicas e um novo motor de 800 cm³, desenvolvido pela Lotus para entregar um consumo de 20 km/l. O carro teria um chassi de alumínio exposto, enquanto os para-lamas de plástico seriam substituídos facilmente em caso de colisões.
Apesar da visão futurista e das parcerias promissoras, o projeto Delta nunca saiu do papel, e a Gurgel encerrou suas atividades, deixando para trás um legado de inovação e ousadia.
O Legado de João Gurgel
João Augusto Conrado do Amaral Gurgel foi, sem dúvida, um dos pioneiros da indústria automobilística brasileira. Seus carros, embora não tenham alcançado o sucesso comercial esperado, foram marcos de uma mentalidade visionária. O MotoMachine é o exemplo perfeito de sua abordagem única para os problemas da mobilidade urbana: um veículo compacto, econômico, e voltado para as necessidades do trânsito nas grandes cidades.
Nos dias de hoje, onde soluções de mobilidade sustentável e veículos compactos estão cada vez mais em evidência, o Gurgel MotoMachine poderia ser visto como um precursor de conceitos que só viriam a ganhar força décadas mais tarde.
Considerações Finais
O Gurgel MotoMachine não foi apenas um carro; foi uma ideia, uma visão de futuro que infelizmente chegou antes do seu tempo. Se você tivesse a chance de dirigir um desses modelos hoje, estaria guiando uma verdadeira peça de história. Um carro que, mesmo com suas limitações e peculiaridades, carregava consigo a marca de um dos maiores visionários da indústria automobilística nacional.
Hoje, modelos como o Smart e outras opções de carros compactos urbanos dominam as ruas das grandes cidades, mas poucos sabem que aqui no Brasil, nos anos 90, João Gurgel já havia proposto algo similar. O MotoMachine foi, e sempre será, um exemplo de como a inovação pode surgir em qualquer lugar, desde que haja pessoas dispostas a sonhar e a transformar esses sonhos em realidade.
Se você é um entusiasta da história dos carros brasileiros, o Gurgel MotoMachine é uma peça que merece ser lembrada e celebrada, como um testemunho da criatividade e da ousadia de um homem que sempre acreditou no futuro da indústria nacional.